terça-feira, 23 de junho de 2015

CONHECI UM HOMEM SANTO!

Seu nome era Ângelo Angioni, Padre por vocação e desígnio de Deus. Nasceu na Itália mas veiopara o Brasil, mais precisamente aqui para José Bonifácio, logo após seus primeiros anos de ordenação sacerdotal. Nesta cidade viveu a maior parte de sua vida, difundindo o Evangelho de Jesus, ensinando bondade e distribuindo amor para o povo. Mesmo sendo Padre católico, sempre mereceu o respeito e admiração de evangélicos, espíritas e membros de outras crenças e isso, ninguém fazia questão de ocultar.

Conheci bem Ângelo Angioni e por toda sua vida com ele mantive estreita amizade. Criança ainda, eu e outros de minha idade, tínhamos dificuldade para pronunciar seu nome e, na nossa inocência, optamos por Padre Anjo e logo fomos seguidos por toda a cidade. Chamá-lo Padre Anjo era mais fácil que Padre Ângelo e em pouquíssimo tempo as pessoas o reconheciam assim. Na verdade, mesmo contra sua vontade, nós crianças, víamos nele um anjo. Na nossa inocência, aquele homem sempre vestido com uma batina preta apesar do calor imenso que fazia em José Bonifácio, era um anjo, pela bondade, as palavras de carinho e o costumeiro afago nas nossas cabeças quando mexia nos nossos cabelos, vendo-nos com seus olhos mansos e brilhantes, sorrindo-nos de modo muito especial. Era assim que se portava, em todos os momentos.

Naquele tempo José Bonifácio tinha três Padres apenas, todos de origem italiana: Padre Maurício Caputo já bem velhinho, Padre Anjo e Padre João Carta. Caputo, com a saúde em declínio, andava vagarosamente e só oficiava missas na Matriz, como as de encomendação de almas sempre às seis da manhã. Ficavam com os Padres Anjo e João as tarefas de administração da Paróquia, os ofícios das demais missas, dos batizados, casamentos e bênçãos fúnebres. A cidade tinha então só a imponente Igreja Matriz, consagrada à São João Batista, Padroeiro de José Bonifácio. Nesta região que era essencialmente agrícola, nas fazendas e sítios, era comum a presença de capelas.

Sei bem disso porque fui coroinha. Durante a infância e juventude, auxiliava os Padres e o Bispo no ofício das Santas Missas, dos casamentos e batizados. Todos os ritos religiosos eram proferidos em Latim. A liturgia era praticada com muita fé, reverência e profunda devoção. Os cânticos nas missas e nos demais ofícios eram ditos em latim também. Os padres e coroinhas usavam paramentos conforme o período definido por Roma. Na Quaresma por exemplo, as imagens dos Santos nas Igrejas ficavam cobertos com panos roxos, a mesma cor dos nossos paramentos. Nas missas do Tempo Pascal, nossas vestes eram brancas. Nos ofícios fúnebres, todos com roupas negras. Quando celebrávam os Pentecostes, a cor vermelha dos paramentos predominava. Tinha também vestes nas cores verde, e uma de amarela bem claro. Foi assim que passei toda minha infância e começo de juventude, cuidando da alma, aprendendo ofícios religiosos, participando da Cruzada Eucarística. Fui também Carmelita, consagrado à Confraria de Nossa Senhora do Carmo.

Com o Padre Anjo aprendi muito. Era um homem profundamente culto, adepto dos estudos, amante da literatura e das artes, músico, escritor. Tinha ele na Casa Paroquial uma imensa quantidade de livros sobre todos os assuntos, religiosos ou não, escritos em Português, Francês, Italiano, Espanhol, Grego, Latim. Livros sobre Arte, invariavelmente sobre os consagrados pintores italianos como Michelangelo, Tintoreto e muitos outros ficavam à mostra. Padre Anjo deixava que folheássemos essas preciosidades e, por sermos crianças e não sabendo ler aqueles idiomas estrangeiros, ele nos contava histórias sobre as gravuras que víamos de olhos esbugalhados, principalmente aquelas relacionadas à Capela Sistina.

Dele só recebi maravilhosos ensinamentos e orientações sobre a importância de ser bom, distribuir amor e retribuir com carinho à tudo que estivesse à nossa volta. Nunca me ameaçou com "o fogo do inferno" mas alertava para a necessidade de obedecer à Deus e seus Mandamentos, bem diferente das aulas de catequese quando era confrontado com o terror espalhado por Satanás que "está nas ruas e no seu rastro, pronto para levar sua alma". O medo do fogo eterno me levou um dia a criar coragem e pedir ao Padre Anjo para me livrar desse perigo. Ele sorriu meigamente e disse-me mais ou menos assim que, "crianças são de Jesus, o Anjo de Guarda as protege, não tenha medo. Respeite seu pai e sua mãe, reze sempre e em qualquer situação pedindo orientação à Nossa Senhora, ajude as pessoas quando elas precisarem. Não faça o mal e assim você não precisa ter medo do inferno".

Curioso é que "o medo do fogo que me consumiria se caísse em pecado" desapareceu e nas aulas semanais de catecismo, não me encolhia mais quando Dona Odete Bracci, Odete Jorge, Julieta Nassif, Glória Álvares, catequistas sempre piedosas e preocupadas com nossa salvação, revelavam os horrores que era viver após a morte em tacho de óleo fervente no reino de Satã.

Todo Domingo após o almoço, Padre Anjo ou Padre João saiam para rezar missas nas capelas rurais, sempre com um ou dois coroinhas a tiracolo. Ah!, é bom recordar que naquele tempo, "meus companheiros de batina" eram o Roberto Fagali, José Fagali, João Ciani, Joãozinho Borges, Carlinhos Bracci, Martelo, José Antonio Garcia, Nelson "Pimenta" Babos e outros cujos nomes não aparecem agora no écran da memória. Carlinhos Bracci e Martelo entraram no Seminário e foram ordenados Padres. Carlinhos faleceu e Pimenta também. Os demais estão por aí, neste mundão de Deus. Como dizia, rezavam-se missas nas tardes de Domingo nas capelas rurais e era uma festa para o coroinha escalado, poder acompanhar o Padre na viagem feita no "carro de praça", como eram conhecidos os táxis dirigidos pelo bondoso Manezão, "seu" Ermínio, Carlito Frederico, ou o Alberto Português.

Padre Anjo foi grande amigo de minha família e mantinha ótima relação de amizade com meu pai Milton Santiago, músico como ele, pintor autodidata e que a seu pedido pintou e doou à Igreja dois magníficos e imensos quadros, retratando São Sebastião e Nossa Senhora da Defesa, e que por vários anos ficaram expostos na Igreja Matriz de José Bonifácio e dos quais não sei o paradeiro. Pouco antes de completar 18 anos fui para São Paulo para estudar, trabalhar e morar com meus tios Izidoro Pagnossim e Tia Nica, ela irmã de meu pai. Foi uma mudança drástica em minha vida. Antes da viagem fui conversar com Padre Anjo, para despedir-me e relatar meus temores. Dele recebi proveitosos conselhos e benção especial, dizendo-me entre outras coisas que continuasse sendo bom moço, não mudando meu jeito de ser e que não esquecesse os ensinamentos ditos por meus pais, pelas catequistas e que nunca deixasse de rezar. E mais, que estudasse muito, sempre. E foi o que fiz e faço até hoje.

Uma coisa me incomodava. Por que Padre Anjo não podia ser um Bispo, se era íntegro, culto e devotado à Igreja? Um dia, conversei com ele sobre isso. Eu já havia retornado para José Bonifácio depois de ficar fora por 30 anos, aqui fundara um jornal e tocava a vida com simplicidade como sempre fiz. Queria saber por que ele nunca deixara de ser um simples Padre e "não merecera promoção". Sabem o que ele me respondeu, com sua humildade tão conhecida? "Deus não programou isto para mim. Meu lugar é aqui com essa gente que me acolheu tão bem, que se tornou minha família verdadeira. Tenho muita coisa para fazer aqui". E nossa conversa enveredou por várias horas, entremeada pelos meandros da política do Vaticano, as nuances dos conceitos das cartas encíclicas Rerum Novarum (Papa Leão XIII), Mater et Magistra e Pacem in Terris (Papa João XXIII), os caminhos que a Igreja estava tomando com as mudanças em andamento nos ritos litúrgicos, etc. Era muito bom conversar com ele, uma "palestra magna", que sempre me maravilhava e aprendia embevecido.

Ele era assim, desprovido de vaidade e apego às coisas materiais. Sua batina negra era humilde e surrada. Seu carro – ou melhor, da Igreja – era um Fusquinha branco, antigo, usado apenas para levá-lo nas visitas diárias às pessoas doentes ou nos locais onde rezava missas. Sua vida era restrita às dependências da Casa Paroquial e ao interior da Igreja. Suas horas eram ocupadas pela oração meditativa, aos estudos e dedicada aos vários livros que escreveu. Tenho comigo, dado por ele como presente, um raro exemplar de "Quem, como Deus?", que assina com o pseudônimo Mikael, de leitura profunda e filosófica.

Foram muitas as nossas "prosas", eu jornalista, depois que retornei de São Paulo. Acho que muito mais por bondade e curiosidade, é que ele gostava quando trocávamos ideias, principalmente as que enveredavam para o campo político. Dele recebei incontáveis lições, defensor que era do conceito da democracia cristã. Não havia corrupção explícita praticada pelos ocupantes de cargos públicos como nos dias de hoje, mas Padre Anjo me recomendava em todas as oportunidades que minha missão como jornalista era sagrada, importante para a comunidade onde atuasse, e que deveria pautar-me pela difusão da verdade, não importando quem seja o governante. "Você deve escrever sobre os fatos como eles são. Quem está governando deve explicações ao povo em qualquer situação. O dinheiro dos impostos é sagrado e deve ser aplicado para beneficiar e não para cair nos bolsos pessoais de alguém. O jornalista deve ficar atento ao que o governo faz. E você, na posição que está, tem que ser o defensor dos fracos e dos oprimidos. Você, querendo ou não, enquanto jornalista, é como um discípulo de Jesus, precisa pregar e defender os bons costumes."

Quando ficou doente vitimado pelo primeiro AVC em pleno altar oficiando uma missa, perdeu parcialmente a mobilidade física, mas conseguiu manter a mente ativa. Era levado de um lado para outro em cadeira de rodas, participava de algumas missas, tomava seu obrigatório banho de sol na Praça da Matriz, visitava diariamente o Colégio Coração Imaculado de Maria por ele fundado, e mesmo com dificuldade, enquanto pode sinalizava orientações aos paroquianos. Depois veio outro AVC, terrível, que o manteve em coma profundo por vários anos, até o dia em que Deus decidiu que era o momento de morrer.

Padre Anjo viveu e morreu como um santo. Atribuem-lhe milagres e eu conheço pessoas que atestam sua intercesão nas curas de suas doenças. Atesto que estavam doentes sim e de forma estupenda recobraram a saúde. Tramita um processo conforme o rito canônico na Igreja Católica, propondo sua beatificação. Mas, independentemente disso acontecer, para nós, o Padre Angelo Angioni é reconhecido e aceito como Santo.

Seu funeral foi comovente e entristeceu não só seus paroquianos de José Bonifácio, mas os de todas as cidades da região. Milhares de pessoas de todos os credos prestaram-lhe merecidas honras fúnebres. Seu corpo foi recolhido à cripta especialmente construída na Igreja Matriz. Eu estava lá, despedindo em prantos, do meu querido amigo Padre Anjo.